As metamorfoses de Picasso
A sensação de quem vê as pinturas de Picasso é a de estar grogue, como que bêbado sem ressaca, exaurido mas feliz. É sobreviver a Picasso – e sentir a vida bem melhor depois disso. A sua criatividade é tão profunda que que a visão de suas obras transformam-se num teste de resistência para a mente e para o corpo, Picasso parece querer sugar nossa energia, usá-la na sua arte, e lançar na nossa consciência a irredutível multiplicidade do real. Ele tenta e consegue nos convencer-nos que é muito mais interessante um mundo incerto do que um mundo em que a beleza rejeita a dúvida.
Picasso incomoda com a sua voracidade, e nenhuma delicadeza lhe vai roubar a vida. A sua obra é uma criatura urbana, e sua arte é angulosa e intensa, não é o refúgio repousante que muitos podem querer encontrar nas suas obras, e a sua sutileza e delícias são tantas que nem a mais bela das cidades a iguala.
Picasso viveu entre 1881-1973, foi em suma um sobrevivente. Ele sobreviveu a detratores, imitadores e bajuladores, à rotina da existência comum e à sua própria excitabilidade intelectual, à tradição e ao duelo pictórico com Matisse, às ideologias políticas, e continua a sobreviver a livros, artigos e filmes que, como numa tela cubista, sempre lembrando que há outras facetas no gênio que deveriam explicar. O Picasso machista e egocêntrico de James Ivory, por exemplo, pode até ter existido de facto, se quisermos fazer uma estatística simplista dos seus comportamentos familiares e sociais, mas isso não explica jamais como a sua arte interpretou a ansiedade e o medo do homem diante da mulher, ou como ela se tornou para as mais diversas gerações uma demonstração de como as pretensões totalizantes da natureza humana são toscas e tolas. Nesses momentos, que são os que nos importam, não houve machismo ou egocentrismo.
“Pinto o que sei, não o que vejo”, disse Picasso, dono de muitas frases famosas. Outra: “Eu não procuro, eu acho”. Picasso estudou e encarou os chamados Grandes Mestres desde cedo. Michelangelo, Poussin, Rembrandt, Velázquez, Goya, Manet, Cézanne – toda vez que uma inteligência compositiva esteve a serviço das densidades emocionais, ele a examinou, copiou e recriou como se quisesse tomá-la de assalto, mas com o máximo respeito. A tradição é algo a amar e enfrentar, a admirar e encarar. Num século de tantas vanguardas como o século 20, nenhum outro artista devotou à arte do passado tanto tempo, tanta pesquisa apaixonada, quanto Picasso. Não lhe bastava criar variações sobre esses temas: ele queria reformulá-los. “No fundo você sempre amou a beleza clássica”, disse Braque a ele, em outro diálogo célebre. “E acaso existe alguma outra?”, replicou Picasso.
Por isso também há muita discussão sobre as “fases” de Picasso. Robert Hughes, na recente e extraordinária biografia de Goya, escreve que o grande público gosta mesmo é do primeiro Picasso, mais sentimental, das fases azul e rosa. E acrescenta que mesmo o Cubismo, não cria muita empatia porque é um tanto impessoal, já que é difícil distinguir, por exemplo, um Picasso de um Braque dessa fase. Mas, com excepção de algumas dessas obras mais programáticas do chamado “cubismo analítico”, um Picasso é sempre imediatamente identificável, apesar da sua obra ser muito extensa e variada.
Muitas generalizações caem quando aplicadas a Picasso. Ele com apenas 26 anos mudou a história da arte, ao concluir a tela As Senhoritas de Avignon (1907), seria de se poder esperar que passasse o resto da sua vida em dívida consigo mesmo, a reboque da glória juvenil, como tantos outros inovadores que nunca mais souberam manter-se à altura da sua inovação. No entanto, Picasso não só se manteve à altura, como também mudou a sua arte várias vezes. De certo modo, isso comprova a fertilidade do Cubismo: apesar da sensação de esquematismo que sua proposta de desmembrar pessoas e objectos em planos oblíquos pode causar hoje em dia, ele foi, sem duvida, o iventor de uma nova forma de ocupar o espaço da tela, de articular figura e fundo de uma maneira menos hierarquizada, com mais movimento relativo. As prostitutas da rua Avignon, em Barcelona, desafiam-nos com seus corpos fragmentários enquanto nos seduzem com sua disposição circular.
Antes ainda de 1907, e ao contrário da maioria dos artistas que vivem um “turning point” em suas carreiras, Picasso já era um grande artista. Mesmo que soe mais melancólico e lírico na fase azul de 1900-1904 do que seria depois, o que fez antes do Cubismo, contém uma força expressiva que ninguém pode negar, ao mergulhar as figuras com estilização clássica numa textura de cores que lembra Van Gogh e Gauguin. É a chamada fase rosa, dos três anos que antecedem as Demoiselles, quando Picasso solta gradualmente o seu desenho, quebrando com o uso da linha, como organizadora das áreas de cor. Em seguida, porém, volta aos tons sóbrios, entrando na chamada fase negra de 1907-1909, como em Três Figuras sob a Árvore, em que desenvolve os preceitos cubistas do espaço dividido não mais em planos quase uniformes, como em Cézanne, mas em planos de medidas diversas, com muitos ângulos agudos e curvas.
Na segunda década do século, surgem novos temas que sugerem novas formas para Picasso, mesmo que dentro da estratégia cubista: é o tempo dos homens com violões, das naturezas-mortas, das cadeiras. Nos anos 20, depois do casamento com Olga, vai revisitar o “clássico” com suas Três Mulheres na Fonte (1921) ou suas Banhistas (1928), em que as figuras femininas aparecem numa deformação elegante, à maneira de Ingres, Degas, Cézanne e outros “contidos”. Mas sem deixar de esquecer o Surrealismo em obras como O Beijo (1925), em que o casal se converte numa mescla de cores quentes e linhas pretas, ou Mulher Sentada numa Poltrona (1929), um de seus temas favoritos, por combinar relaxamento e sedução.
Picasso já está casado com outra mulher, Marie-Thérèse, quando compra em 1930 o castelo Boisgeloup, perto de Gisors, na França, e ali inaugura nova fase. Suas esculturas ganham volumes lisos e traços económicos, num estilo que inspiraria Henry Moore mais tarde, e também suas telas parecem abandonar o fragmentário e apostar num colorido quase decorativo, organizado por escassas e firmes linhas pretas, como em Figura à Beira do Mar (1933), um Picasso matisseano mas não menos Picasso. E, sendo Picasso, isso não o impedia de ao mesmo tempo voltar a tratar dos temas fortes como crucificações e touradas, em estilo novamente facetado. O caminho estava aberto para Guernica, de 1937, os homens-lagostas, os esqueletos, os minotauros, como ele próprio o disse, “A pintura é arma contra a escuridão”.
Mas ainda havia novos trilhos, como as cerâmicas feitas em Vallauris, com seus faunos, no final dos anos 40, e os “anos Jacqueline”, seu novo amor, nos anos 50, quando se instala em Cannes e volta a temas como banhistas e o almoço na relva de Manet e Cézanne. Em Jacqueline com as Mãos Cruzadas (1954), por exemplo, a simplicidade do resultado não disfarça a complexidade da composição, a nova maneira de usar áreas de cor preta, a fisionomia mais naturalista. Assim, até o fim da vida, Picasso vai-se reinventando, e multiplica-se, deixa-se encantar por novos e velhos assuntos, por novas e velhas técnicas, derrubando o conceito de que o Modernismo foi um golpe niilista no legado da história. E consolida seu lugar ao mesmo tempo lógico e extraordinário na linhagem da arte ocidental, a qual ele precisou amar muito para poder mudar, como sempre ocorre nos grandes amores e nas grandes criações.
(Baseado no artigo de Daniel Piza)
Picasso incomoda com a sua voracidade, e nenhuma delicadeza lhe vai roubar a vida. A sua obra é uma criatura urbana, e sua arte é angulosa e intensa, não é o refúgio repousante que muitos podem querer encontrar nas suas obras, e a sua sutileza e delícias são tantas que nem a mais bela das cidades a iguala.
Picasso viveu entre 1881-1973, foi em suma um sobrevivente. Ele sobreviveu a detratores, imitadores e bajuladores, à rotina da existência comum e à sua própria excitabilidade intelectual, à tradição e ao duelo pictórico com Matisse, às ideologias políticas, e continua a sobreviver a livros, artigos e filmes que, como numa tela cubista, sempre lembrando que há outras facetas no gênio que deveriam explicar. O Picasso machista e egocêntrico de James Ivory, por exemplo, pode até ter existido de facto, se quisermos fazer uma estatística simplista dos seus comportamentos familiares e sociais, mas isso não explica jamais como a sua arte interpretou a ansiedade e o medo do homem diante da mulher, ou como ela se tornou para as mais diversas gerações uma demonstração de como as pretensões totalizantes da natureza humana são toscas e tolas. Nesses momentos, que são os que nos importam, não houve machismo ou egocentrismo.
“Pinto o que sei, não o que vejo”, disse Picasso, dono de muitas frases famosas. Outra: “Eu não procuro, eu acho”. Picasso estudou e encarou os chamados Grandes Mestres desde cedo. Michelangelo, Poussin, Rembrandt, Velázquez, Goya, Manet, Cézanne – toda vez que uma inteligência compositiva esteve a serviço das densidades emocionais, ele a examinou, copiou e recriou como se quisesse tomá-la de assalto, mas com o máximo respeito. A tradição é algo a amar e enfrentar, a admirar e encarar. Num século de tantas vanguardas como o século 20, nenhum outro artista devotou à arte do passado tanto tempo, tanta pesquisa apaixonada, quanto Picasso. Não lhe bastava criar variações sobre esses temas: ele queria reformulá-los. “No fundo você sempre amou a beleza clássica”, disse Braque a ele, em outro diálogo célebre. “E acaso existe alguma outra?”, replicou Picasso.
Por isso também há muita discussão sobre as “fases” de Picasso. Robert Hughes, na recente e extraordinária biografia de Goya, escreve que o grande público gosta mesmo é do primeiro Picasso, mais sentimental, das fases azul e rosa. E acrescenta que mesmo o Cubismo, não cria muita empatia porque é um tanto impessoal, já que é difícil distinguir, por exemplo, um Picasso de um Braque dessa fase. Mas, com excepção de algumas dessas obras mais programáticas do chamado “cubismo analítico”, um Picasso é sempre imediatamente identificável, apesar da sua obra ser muito extensa e variada.
Muitas generalizações caem quando aplicadas a Picasso. Ele com apenas 26 anos mudou a história da arte, ao concluir a tela As Senhoritas de Avignon (1907), seria de se poder esperar que passasse o resto da sua vida em dívida consigo mesmo, a reboque da glória juvenil, como tantos outros inovadores que nunca mais souberam manter-se à altura da sua inovação. No entanto, Picasso não só se manteve à altura, como também mudou a sua arte várias vezes. De certo modo, isso comprova a fertilidade do Cubismo: apesar da sensação de esquematismo que sua proposta de desmembrar pessoas e objectos em planos oblíquos pode causar hoje em dia, ele foi, sem duvida, o iventor de uma nova forma de ocupar o espaço da tela, de articular figura e fundo de uma maneira menos hierarquizada, com mais movimento relativo. As prostitutas da rua Avignon, em Barcelona, desafiam-nos com seus corpos fragmentários enquanto nos seduzem com sua disposição circular.
Antes ainda de 1907, e ao contrário da maioria dos artistas que vivem um “turning point” em suas carreiras, Picasso já era um grande artista. Mesmo que soe mais melancólico e lírico na fase azul de 1900-1904 do que seria depois, o que fez antes do Cubismo, contém uma força expressiva que ninguém pode negar, ao mergulhar as figuras com estilização clássica numa textura de cores que lembra Van Gogh e Gauguin. É a chamada fase rosa, dos três anos que antecedem as Demoiselles, quando Picasso solta gradualmente o seu desenho, quebrando com o uso da linha, como organizadora das áreas de cor. Em seguida, porém, volta aos tons sóbrios, entrando na chamada fase negra de 1907-1909, como em Três Figuras sob a Árvore, em que desenvolve os preceitos cubistas do espaço dividido não mais em planos quase uniformes, como em Cézanne, mas em planos de medidas diversas, com muitos ângulos agudos e curvas.
Na segunda década do século, surgem novos temas que sugerem novas formas para Picasso, mesmo que dentro da estratégia cubista: é o tempo dos homens com violões, das naturezas-mortas, das cadeiras. Nos anos 20, depois do casamento com Olga, vai revisitar o “clássico” com suas Três Mulheres na Fonte (1921) ou suas Banhistas (1928), em que as figuras femininas aparecem numa deformação elegante, à maneira de Ingres, Degas, Cézanne e outros “contidos”. Mas sem deixar de esquecer o Surrealismo em obras como O Beijo (1925), em que o casal se converte numa mescla de cores quentes e linhas pretas, ou Mulher Sentada numa Poltrona (1929), um de seus temas favoritos, por combinar relaxamento e sedução.
Picasso já está casado com outra mulher, Marie-Thérèse, quando compra em 1930 o castelo Boisgeloup, perto de Gisors, na França, e ali inaugura nova fase. Suas esculturas ganham volumes lisos e traços económicos, num estilo que inspiraria Henry Moore mais tarde, e também suas telas parecem abandonar o fragmentário e apostar num colorido quase decorativo, organizado por escassas e firmes linhas pretas, como em Figura à Beira do Mar (1933), um Picasso matisseano mas não menos Picasso. E, sendo Picasso, isso não o impedia de ao mesmo tempo voltar a tratar dos temas fortes como crucificações e touradas, em estilo novamente facetado. O caminho estava aberto para Guernica, de 1937, os homens-lagostas, os esqueletos, os minotauros, como ele próprio o disse, “A pintura é arma contra a escuridão”.
Mas ainda havia novos trilhos, como as cerâmicas feitas em Vallauris, com seus faunos, no final dos anos 40, e os “anos Jacqueline”, seu novo amor, nos anos 50, quando se instala em Cannes e volta a temas como banhistas e o almoço na relva de Manet e Cézanne. Em Jacqueline com as Mãos Cruzadas (1954), por exemplo, a simplicidade do resultado não disfarça a complexidade da composição, a nova maneira de usar áreas de cor preta, a fisionomia mais naturalista. Assim, até o fim da vida, Picasso vai-se reinventando, e multiplica-se, deixa-se encantar por novos e velhos assuntos, por novas e velhas técnicas, derrubando o conceito de que o Modernismo foi um golpe niilista no legado da história. E consolida seu lugar ao mesmo tempo lógico e extraordinário na linhagem da arte ocidental, a qual ele precisou amar muito para poder mudar, como sempre ocorre nos grandes amores e nas grandes criações.
(Baseado no artigo de Daniel Piza)
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